Biblioteca viva & o pendrive do fim do mundo
Nem sempre tudo o que diz que está na Internet, continuará estando na Internet
Devo confessar que sou uma inveterada acumuladora de livros digitais. Se pretendo lê-los todos? Não, nem ousaria. Não me resta tempo suficiente para essa façanha, mesmo que tenha a mesma quantidade de anos já vividos disponíveis à minha frente. Se pretendo um dia parar de acumulá-los no meu drive? Talvez quando não houver mais pulso de vida para mover o mouse.
Reconheço o prazer que têm os donos de biblioteca de ordenar livros físicos, de papel, cartão e ácaros diversos, nas prateleiras das estantes. Inclusive valorizo o esforço físico necessário para fazer o trabalho sisífico de manter prateleiras limpas, organizadas e com o menor acúmulo possível dos tais ácaros e outras entidades bibliófagas contra as quais a luta é eterna e constante. Afinal, tenho minha própria biblioteca de papel, já requerendo uma manutenção forçada.
Existe, sim, um prazer em tirar todos os livros do lugar, folheá-los, descobrir quais estariam com as páginas irremediavelmente coladas, não fosse aquela visita semestral a cada um dos mundos contidos nas estantes. E vê-los todos, no lugar designado, separados por temas, cores, autores, correlações ou como você bem entender, depois de passar brevemente por cada universo disponível para exploração, é muito satisfatório.

Mas aí você precisa consultar alguns livros e vai tirando-os do lugar. Precisa encaixar uns outros que pegou emprestado, ganhou de presente ou mesmo achou por uma pechincha naquela feira de livros que você só parou porque era no meio do caminho (previamente calculado e premeditado, claro). Eles vão se aconchegando ali, pelos arredores da estante. Na mesa do computador. Na mesinha de cabeceira, afinal esse é pequenininho, dá pra ler relaxando na cama (até o livro terminar soterrado por brincos, envelopes de remédio, umas presilhas e aquele colar que eu estava procurando para ir na festa e quase não achei). De repente os livros se empilham na mesa de jantar, e em algum momento chega a hora de tirar o fim de semana para organizar os livros, limpá-los, repensar seus posicionamentos nas prateleiras (e em nossas vidas) e aproveitar para dar uma olhadinha no mundo que cada um contém, talvez já selecionando as próximas leituras.
Acho esse um ritual muito importante de bibliotecas físicas. Existe um prazer e uma sabedoria em acumularmos material de leitura, mesmo que a gente nunca leia tudo aquilo. A gente está construindo uma rede de saberes, informações e vivências na qual é possível aquela aventura de capa e espada conviver com o livro de alta fantasia, o pornô de fadas, a alta filosofia e a história da arte, e cada um deles, em toda a sua diversidade, é capaz de nos acrescentar algo. Inclusive as boas e merecidas horas de descanso lendo algo por puro entretenimento e deleite.
Mas ele dá trabalho.
E, cinco dias depois, já está saindo do lugar, em novas buscas por leituras, uma HQ terminada aqui, um conhecimento muito denso largado para a devida digestão ali, a consulta a um manual e todo esse movimento próprio das entidades vivas.
Mas nós, serezinhos nascidos e banhados na proto-cybercultura, temos acessos a esses tais arquivos digitais desde muito cedo. Fazendo parte de uma geração fascinada ao mesmo tempo por A Bela e A Fera e Matrix, o encantamento pelo acúmulo de livros e o colecionismo foi transplantado muito facilmente para a realidade digital. E, logo, eu estava colecionando hordas de livros digitais, das mais diferentes formas, pelos mais diferentes motivos.
Tudo começou como estudante universitária, como deve ter começado para muitos. Assim que ingressamos no curso, somos apresentados ao conceito da xerox, da qual extraíamos todo e qualquer conteúdo necessário para as aulas de determinados professores. Nem sempre fazia sentido comprar o livro, por um ou dois parágrafos. Nem em sonhos a biblioteca teria 60 exemplares para distribuir por todos os alunos. Assim sendo, os quiosques de xerox foram os primeiros distribuidores de conteúdo formativo importante de forma moralmente questionável.
Não demorou muito para que estivessem disponíveis volumes completos, em páginas escaneadas de fotocópias há muito desgastadas, compactados no formato .PDF, cuja qualidade só melhorou com o passar dos anos. O lançamento de livros digitais e leitores de e-books aprimorou exponencialmente a experiência de leitura e era muito fácil encontrar qualquer coisa. Tinha um livro que precisei para o meu TCC e consegui encontrá-lo, perdê-lo e encontrá-lo de novo. Quando, anos mais tarde, quis indicá-lo para um amigo que não conseguiu encontrar em sebo ou livraria, também não o achei nos lugares onde ele geralmente estava, digitalmente.
Isso me deu um desconforto. E uma revelação: nem sempre tudo o que diz que está na Internet, continuará estando na Internet. Às vezes, coisas vão desaparecer, como edifícios sendo demolidos para colocarem um mais feio no lugar, ou um belo parque sendo transformado em um paraíso imobiliário ostentoso e sem personalidade. Bateu o mesmo estalo que em Marion Stokes, que percebeu, em certo momento de sua vida de produtora e arquivista, que todo o histórico da programação da TV da época dela seria simplesmente destruído e começou a gravar em fita VHS tudo o que era transmitido. Hoje, as fitas dela são consideradas um patrimônio e estão sendo digitalizadas, porque todo o arquivo físico das emissoras realmente se foi. Já eu, comecei a guardar tudo aquilo que sentia que me seria útil.

Obviamente que, num contexto de distopia pós-apocalíptica futurista e fantasiosa em que eu fosse obrigada a colocar apenas alguns dos meus arquivos em um pendrive de tamanho limitado antes da fuga para um local mais seguro, tenho uma noção de quais eu eliminaria (e quais colocaria num pendrive separado e particular). Felizmente eu não passarei por isso, afinal já estou beirando os quarenta e todos sabem que a mocinha nesse cenário ou é uma adolescente ou está na casa dos vinte. É uma questão de estamina, elas escapam, a gente morre confortavelmente. Ou não, eu espero conseguir atrapalhar os perseguidores, atrasá-los um pouquinho. Provavelmente custará o meu conforto. Mas tenho ideia do que vou colocar no pendrive que passarei para a protagonista, afinal é importante abastecer a nova geração de conhecimento (e alguma literatura inútil, só pra saberem que o ser humano sempre vai ser meio boboca - e tá tudo bem).
Organizar esse pendrive seria, inclusive, muito mais prazeroso do que uma seleção de livros físicos. Não vou nem comentar o tópico óbvio que é a quantidade facilmente transportável de cada um. Mas existe, também, um prazer em organizar livros digitais. Categorizá-los, inserir os metadados, etiquetá-los, trocar suas capas, olhar o conteúdo de um e de outro, observá-los todos organizados por títulos ou temas ou autores… E, como com os livros físicos, pensar nas próximas leituras, qual o tom, a textura, a temática dos próximos meses. Quão denso o conteúdo? Qual “sobremesa” inserir entre uma leitura mais pesada e outra? Como harmonizar?
No fim, há uma grande vantagem: não importa quão remexidos os livros, eles nunca saem do lugar. O confete de informações ali só existe no plano do pensamento, não há a cena comum do fim de semana de arrumação da estante, do feliz proprietário rodeado por algumas pilhas de livros, com três abertos aos seus pés, um sendo folheado, um paninho no ombro e um chapeuzinho esquisito encontrado nas estantes devidamente encaixado na cabeça, apenas o usuário se sentindo nesse cenário enquanto cuida de cada um de seus arquivos. E, ao fechar o programa de gerenciamento, tal qual o fremir da varinha da Fada Madrinha, tudo volta ao seu lugar, e a máquina desliga. Os livros físicos, por sua vez, terão de ser devidamente dispostos um a um, sempre, mesmo quando o Feitiço da Disposição para Organização perder sua magia, com a décima segunda badalada do relógio.
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